sábado, 8 de outubro de 2011

Eu sei, mas não devia.

  Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra cista que não seja as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E por que não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

  A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer Sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

  A gente se acostuma a abrir o jornal e ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja o número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

  A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

  E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se obra.

 A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios.
A ligar a televisão e ver comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma à poluição.

  As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A lus artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar.
A lenta morte dos rios.

  Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães.
A não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente e acostuma a coisas demais para não sofrer.

  Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento aqui, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

  Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo.
E ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

  A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta e, que gasta, de tanto acostumar, se perde a si mesma.

 Texto de: Marina Colasanti

Por: Uriel Dias de Oliveira

3 comentários:

  1. E quem nao se acostuma...revoluciona !

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  2. Foi o nosso texto na prova do simulado, nééé?
    EU AMEI O TEXTO!!!

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  3. Muito bom!
    Realmente disse tudo.
    Infelizmente os jovens estão cada vez mais se acostumando e aceitando também, pois é neste mundo que serão criados, onde não existe a conscientização para que tudo mude, Onde as pessoas estão desistindo de viver, e se conformam completamente, mesmo estando em meio a podridão... Eu não quero isso para mim! Revolução já!

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